Minha vida

Posso dizer que desfruto uma vida privilegiada e afirmo com convicção que existe por trás de tudo isso uma ou mais entidades que me dão o apoio, orientação e proteção em tudo que faço. Claro que isso é uma crença pessoal e particular. Tirei essa conclusão pelos seguintes motivos:

Quando cheguei ao fim de meu curso primário em 1965, disse à minha mãe que queria estudar no Seminário Pio X, em Santarém. Ela não questionou, nem opinou a respeito. Fomos até o local conversar com o diretor que nos explicou todo o funcionamento da Instituição e ressaltou que eu iria ficar recluso durante todo o semestre, só iria para casa nas férias. Estudaria o dia inteiro junto aos demais colegas. Havia horas de recreio, claro, mas a maior parte do tempo era para estudar. Descreveu outros procedimentos disciplinares, ou seja, o sermão foi tão grande e assustador que me deixou temeroso, mas eu não disse nada. Escutei calado sem fazer qualquer pergunta. Então ficou acertado para eu retornar no início do ano seguinte, 1966 e ingressar no internato. Ao deixarmos o local, no caminho de casa, virei para minha mãe e disse-lhe: — Não quero mais estudar no seminário. Vou pro colégio Dom Amando. Minha mãe mais uma vez não fez nenhuma objeção. Ela entendeu perfeitamente o que eu estava sentindo e logo no dia seguinte fomos providenciar a matrícula naquele colégio.

Essa foi a primeira identificação da atuação de meu anjo guardião interferindo diretamente nos rumos do meu caminho. Digo isso porque se eu ingressasse no Seminário, no regime de internato, não teria desfrutado de minha vida maravilhosa de liberdade. Nada contra o Seminário, mas lá eu não poderia fazer o que fiz. Vivi solto, correndo atrás de papagaio. Colhendo manga nos quintais alheios. Jogando bola na rua. Tomando banho no rio e muitas outras peripécias típicas daquela idade. Meus pais foram maravilhosos, pois não me tolhiam de nada, apenas vigiavam. Uma vigília protetora. Este período talvez tenha sido o mais instrutivo de minha vida, pois tive o merecimento de conviver com muitos amigos com os quais eu tinha muita afinidade que me ensinaram muito sobre a vida. Eram meus professores sem o saberem. O embasamento de minha vida foi construído através dessas experiências.

Passado esse tempo, fui para Belém cursar a faculdade. Logo nos primeiros meses fiz um concurso para trabalhar no Banco do Brasil. Fui aprovado e nomeado para atuar na agência de Marabá. Me deparei com uma encruzilhada – ir para Marabá e cancelar o curso de engenharia ou deixar o banco e continuar estudando. Dois caminhos completamente diferentes. Meus pais eram a favor de que eu continuasse os estudos. Eu desejava muito esse primeiro emprego. Trabalhar e ser provedor de minha própria renda, para mim era motivo de muito orgulho. Insisti nisso. Decidi por deixar o curso e aceitar o emprego. Fiz todos os exames médicos exigidos pelo banco e tinha um tempo determinado para apresentar os resultados dos exames a fim de dar prosseguimento na contratação. No último dia do prazo fui até a agência centro em Belém. Sentei-me na frente de um funcionário, responsável pela formalização da contratação, entreguei os laudos médicos e ele me apresentou o formulário de admissão para eu assinar junto com a passagem aérea para viajar até Marabá. Peguei nos papéis e parei por alguns segundos, olhei bem pra ele e disse-lhe: — Não vou mais para Marabá. O rapaz olhou-me assustado e exclamou: — Você não quer ir pra Marabá? Vai deixar o emprego, então? Ficou louco? Renunciando a um salário bom como este? Com muita calma lhe respondi: — Sim, estou abrindo mão. Sou novo, ainda tenho tempo para outras oportunidades. Não quero o emprego. Vou continuar estudando. Ele não disse mais nada diante da minha firmeza na resposta. Abriu a gaveta, pegou outro formulário e me entregou dizendo: — assina este documento de desistência. Assinei e me retirei do local leve como se tivesse tirado um peso enorme dos ombros. Mais uma demonstração da interferência de meu protetor na tomada de uma decisão tão importante da minha vida. Aliás, eu considero essa como a mais importante das decisões que tomei na minha vida, porque dessa decisão vieram outras. as quais não teriam ocorrido se eu tivesse ido para Marabá.

Logo em seguida, ainda no primeiro semestre de 1973, conheci a Margarete por quem me apaixonei, mas isso é outra história longa.

Em julho de 1978 ao concluir o curso de engenharia civil, tinha em mãos duas propostas de emprego. Uma para trabalhar em Belém, outra em Manaus. Optei pela de Manaus porque o salário era bem melhor e o trabalho mais desafiador. Ainda na fase de negociação para decidir em qual emprego ficaria, recebi correspondência da Universidade Federal do Pará me informando que eu havia sido contemplado com uma bolsa de estudos da CAPES para fazer mestrado na USP, Campus de São Carlos-SP. Outra encruzilhada na minha vida. Mais uma decisão tomada na última hora. Mais um acerto na escolha. Declinei do emprego e optei por continuar estudando, aceitei a bolsa e fiz mais uma escolha acertada.

No momento da formalização para receber a bolsa, tive que assinar um documento em que, ao concluir o curso, ficaria obrigado de prestar serviço para a UFPA por pelo menos dois anos, sob pena de ter que ressarcir a CAPES dos valores correspondentes ao da bolsa. Assinei, é claro.

Em julho de 1981, com o mestrado em fase de conclusão, fui até Belém verificar junto à UFPA como seria minha contratação para cumprir as exigências do documento que eu havia assinado. O funcionário que me recebeu para tratar deste assunto foi direto e objetivo: — Rasga esse documento que você assinou porque a Universidade está proibida, por tempo indeterminado, de efetuar qualquer contratação e você não será cobrado de nada. Sai de lá desolado. Estava desempregado. Sem nenhuma proposta à vista. Voltei a São Carlos pra continuar escrevendo minha dissertação. No primeiro semestre de 1982, o Banco do Brasil abriu concurso. Na falta de opção inscrevi-me. Fui aprovado e, em virtude de minha boa colocação, fui convocado para assumir o emprego logo após a publicação do resultado do concurso. Dessa vez foi para trabalhar em Belém. Mais uma vez meu protetor invisível atuou nos rumos de minha vida. Ingressei no banco em 30 de dezembro de 1982

Nesta vida tive muitas coisas boas, mas também tive outras tantas ruins. Os fatos alegres, prazerosos a gente está sempre rememorando. Mas os acontecimentos dolorosos eu procuro colocar num lugar bem escondido de minha memória porque não os consigo apagar, mas também me recuso a relembrá-los.

Dos fatos felizes posso destacar os momentos vividos com meu grupo de amigos na época que eu era moleque. Depois veio a adolescência, mais amigos e grandes realizações coletivas. O encontro com a mulher que se tornou minha esposa. As lutas pelas quais passamos para construir a família, jamais se apagarão de minha memória. Na Universidade não formei amizades. Estávamos no auge da ditadura militar e a desconfiança era generalizada. Não sabíamos quem estava sentado ao nosso lado. Portanto o melhor era falar e se relacionar somente o necessário.

No Banco do Brasil, meu primeiro e único emprego fiz novas amizades. Excelentes recordações dos amigos por onde trabalhei e morei. Trabalhei em Belém, Campinas, São Luiz, São Paulo e Salvador. Muitos amigos e convivências inesquecíveis. O nascimento de meu filho; o acompanhamento de seu crescimento; as mudanças de cada fase da vida dele são momentos frequentemente relembrados.

Os fatos desagradáveis e muito dolorosos se referem mais às partidas das pessoas que fizeram parte da construção de minha vida. Por mais que se saiba que isso faz parte de nossa vida, a dor é inevitável. Mas dor mesmo se refere ao meu segundo filho o qual não tive a felicidade de desfrutar de sua convivência, mas tive a dura missão de enterrar o seu corpo. Essa é uma ferida que jamais vai cicatrizar. Às vezes as lágrimas são inevitáveis. Impossível de segurar, mas a vida segue seu curso.

Hoje, ano de 2024, aposentado, junto com minha esposa, também aposentada, moramos em Paraty-RJ. Para completar nossa alegria, moram na mesma cidade, meu filho com sua família – esposa e dois filhos e uma filha.

A estrada é longa e o que vamos encontrar pelo caminho é surpresa, mas confio na bússola invisível que me acompanha permanentemente.

Picture of Prazer, sou Eduardo Mussi

Prazer, sou Eduardo Mussi

Nascido em Belém do Pará e em janeiro de 2013 aposentou-se e fixou residência em Paraty – RJ. Publicou seu primeiro livro em 2022. Está sempre em movimento – frequenta academia de musculação, faz caminhada e rema pela baía de Parati, pelo menos duas vezes por semana. Cultiva horta e faz manutenção em seu jardim. Sempre lê, todos os dias.

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Prazer, sou Eduardo Mussi

Nascido em Belém do Pará e em janeiro de 2013 aposentou-se e fixou residência em Paraty – RJ. Publicou seu primeiro livro em 2022. Está sempre em movimento – frequenta academia de musculação, faz caminhada e rema pela baía de Parati, pelo menos duas vezes por semana. Cultiva horta e faz manutenção em seu jardim. Sempre lê, todos os dias.

20 comentários em “Minha vida”

  1. Vania Lúcia Berzoini

    Linda a sua trajetória. Linda a maneira que se colocou na vida e linda a forma que vc descreve os acontecimentos…
    Estou feliz com mais este ajuste em seus passos. Parabéns e sucesso!
    Segue firme, as pessoas precisam ler o que vc escreve.
    O mundo precisa disso.
    Um forte abraço
    Vânia

  2. Maria Cristina de A.F e Cunha

    Grande Edu, um prazer enorme te conhecer ,trocar leituras de textos e bate papos no grupo de escrita da nossa querida Amana. Parabéns pelo seu caminho!!
    Um gde abraço da
    Cris

    1. Querida Ana, você também é uma amiga inesquecível. Está guardada num lugar especial em nossos corações, desde quando nos conhecemos. Beijo

  3. Wilson Ferreira

    Caro Edu,
    Que história bonita e instigante. Experiências e memórias mil. Imagino o que foi crescer numa região cercada de uma natureza rica e depois em cidades industrializadas. Tantas idas e vindas optar por curtir a aposentadoria num paraíso ecológico como Paraty junto do filho e netos. E registrar tudo em livros. Parabéns!

    1. Obrigado pelas palavras, caro Wilson.
      Realmente me sinto privilegiado pela minha origem e pelos amigos que fiz pelo caminho.
      Grande abraço.

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As cinzas e outros contos

Um olhar sincero sobre a complexidade humana.
Em “As cinzas e outros contos”, o escritor Eduardo Mussi explora as intensas dualidades da existência: vida e morte, amor e ódio, dor e esperança.
Com uma escrita fluida, ele apresenta uma série de histórias singulares, aparentemente desconexas, em que os personagens enfrentam dilemas profundos em sua busca por felicidade e compreensão de seus próprios limites.
Nesta obra, cada narrativa convida o leitor a uma jornada breve, porém intensa, marcada por finais em aberto que ressoam com a imprevisibilidade da vida real. Mussi demonstra com maestria que, embora seus textos sejam fictícios, as imitações da vida na arte e entre os indivíduos — com seus vícios e virtudes — são um espelho poderoso da realidade.